quinta-feira, fevereiro 10, 2005

TEMPOS MODERNOS

Estava na fila para tirar os bilhetes para o cinema. Só me apercebi que ele se aproximava quando uma voz feminina logo atrás de mim, falou em tom baixo (sentimo-nos como culpados se não podemos ou não queremos ajudar e daí pretender que a negativa não faça eco pelos outros e por isso o estratégico abanar de cabeça, tem cada vez mais seguidores) e seco um "tenha paciência". A ele então, ouvi perfeitamente dizer «tenho paciência uma ova! Não pode ajudar um desgraçado com uma moeda, mas para o cinema já há, não é?!» O registo de voz soava a diferente do pedinte normal e "profissional" que por hábito é quase gutural e arrastada, muitas das vezes "dramatizando" a miséria, tornando-a mais miserável ainda. Este separava e respirava correctamente as palavras e não gritava para atrair a atenção de quem estava próximo ou procurando intimidar o interluctor. Não; era como se estivesse a acompamhar a mulher na ida ao cinema e de uma conversa natural se tratasse. Porque não obteve resposta dela, acrescentou «daqui não levo nada, está visto! hoje está um dia para esquecer!».

Deu um passo em frente e colocou-se a meu lado; «pode ser que consigo tenha mais sorte. que também vai ao cinema é claro, senão não estava aqui; por acaso até tem cara de pessoa que de vez em quando dá uma moeda aos desfavorecidos...resta saber é se dá mesmo. acertei? posso contar com a sua ajuda? um euro ou dois já não era mau.» Vi-lhe a cara pela primeira vez. Era um gajo dos seus quarenta e poucos anos, alto, barba espessa e negra, por desfazer e com um olhar daqueles que costumamos definir "de tarado" mas ao mesmo tempo, irónico; não era um gajo fácil, não, e a merda da fila não andava nem desandava. Procurei ganhar tempo, fingindo que remexia os bolsos do blaser, pois já tinha decidido que não lhe ia dar nada, aliás não costumo dar esmolas, que desde o tempo da outra senhora se dizia "que dar esmola, era atrasar a revolução..." e este slogan marcou-me para o resto da vida... mas também não gosto de dizer assim tão simplesmente, que não...Enquanto isso, ele olhava-me nos olhos e depois perguntou «vai dizer-me que não tem moedas, não é? é a velha história...mas se disser que aceito notas? que responde a isso?». A fila movia-se e ele acompanhava-me os passos. Estava a duas pessoas da bilheteira e...da salvação.

Sem que nada o fizesse prever, agarrou o meu braço esquerdo tirou algo da algibeira do blusão e disse-me «não se preocupe. este cartão tem o meu endereço e telefones, veja o filme descansado, se precisar levante dinheiro com calma e depois passe por essa morada; também recebo esmolas em casa. até logo».
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