sexta-feira, outubro 29, 2004

DA VIDA para ALÉM da MORTE (1)

Eu sei que sou descuidado até dizer chega. É verdade e tenho de assumir que sempre olhei as passadeiras pintadas no chão das ruas, das avenidas ou das estradas com um certo desdém; que atravessar uma rua antes do sinal fechar para os carros tem riscos para as crianças e idosos mas porquê para mim na plena posse de todas as faculdades físicas e mentais? "Até um dia", diziam-me amigos e conhecidos, tentando avisar-me "antes que me acontecesse algo" por via do meu desprezo por tais sinaléticas e porque eram testemunhas da minha peculiar e sistemática imprevidência. Quantas vezes os vi abanar a cabeça em sinal de reprovação, após ter atravassado a rua, triunfante, com um carro passando a razar pelo meu corpo e buzinando doidamente. Tinham razão; "até um dia".

Quarta-feira passada, a meio da tarde, um pedaço de óleo fez-me escorregar e cair no meio da rua. Foi tudo uma questão de segundos, como se costuma dizer nestes casos; ouvi o grito em uníssono das pessoas que aguardavam na berma do passeio a sua vez de atravessar e antes do pesado me atingir, enquanto debalde me tentava erguer, já adivinhava aquela massa escura e enorme a arremessar-me para longe. Podem crer que não senti nada; nem dor, náusea ou perda de conhecimento. Para ali fiquei inerte, num lago de sangue e no centro de um cada vez maior número de pessoas que gesticulavam e falavam acaloradamente; ouvi perfeitamente a voz do meu vizinho Tavares (o meu campo de visão não permitia vê-lo, sentencioso como era hábito: «...já o tinha avisado, mas ele não queria querer...); e o Carlos do talho a inquirir: «mas tá morto, não está?!» respondendo-lhe o Júlio dos jornais (esse via-o, que me olhava do alto com ar de entendido. «Claro! com uma cacetada daquelas havia de ficar com muita saúde!».

O cento e doze chegou pouco depois. Serviço profissional, rápido e eficiente que um dos gajos de bata branca após me ter "visto" o pulso e de me ter revirado os olhos disse para os outros que «Este já está. É só aguardar a polícia». A policia chegou conversa para aqui, papéis para acolá (o motorista do pesado estava branco como a cal da parede) e lá me acondicionaram finalmente na ambulância. Francamente não sabia para onde me levavam: para o Garcia de Horta não devia ser, pois se estava morto...e pela conversa dos maqueiros que viajavam comigo também não descortinei qualquer pista nesse sentido; aliás a preocupação maior dos sujeitos eram os confrontos de fim-de-semana da super liga. E um deles era cá dos meus: lagarto até dizer chega! Procurei apoiá-lo mas não me deve ter ouvido...Finalmente e depois de uma viagem de cerca de trinta minutos (atravessámos a ponte sobre o Tejo que o seu ruido é inconfundível...) a viatura parou e levaram-me para o interior de um edificio que não reconheci. Por hoje ficamos por aqui. Tenham um óptimo fim de semana que o meu não vai ser muito agradavel: isto aqui dentro é frio como o caraças e ainda por cima depositaram-me em cima de uma mesa de pedra! Intés!!
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